GERAL

Lei Maria da Penha completa 15 anos

ANGELA BOLDRINI E ANNA VIRGINIA BALLOUSSIER

BRASÍLIA, DF, E SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Quando a advogada Mariana Serrano, 32, foi vítima de violência doméstica por parte do então namorado, um tipo “muito metido a ser da paz, da ioga, com um Buda tatuado em cada braço”, ela ficou em choque. “Eu já era feminista, e me iludia pensando que não cairia nessa. A verdade é que não é responsabilidade nossa ficar se prevenindo, é responsabilidade do cara não ser agressor”, diz.

Mariana caiu nessa. Mulheres de todas as cores, classes e idades caem. Desde 2006, o Brasil tem uma legislação exclusivamente voltada a combater vários tipos de violência contra a mulher, da física a outras menos visíveis, como a psicológica e a patrimonial.

A Lei Maria da Penha, que neste sábado (7) completa 15 anos, foi reverenciada por todos os presidentes do período. De Lula (PT), responsável por sua implementação, a Jair Bolsonaro (sem partido), que sancionou alterações para ampliá-la.

O texto aprovado pelo Congresso em 2006 teve como faísca a história da biofarmacêutica Maria da Penha Maia Fernandes, 76, alvo de dupla tentativa de feminicídio pelo homem que conheceu na USP e que virou pai de suas três filhas. O marido primeiro atirou em sua espinha dorsal e simulou um assalto para disfarçar. Depois, com Maria paraplégica em casa, sabotou um chuveiro elétrico para tentar completar a missão homicida.

Falhou e, 38 anos depois, Maria da Penha disse em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo que sua maior conquista não foi ver o agressor preso, e sim “batizar a lei que protege todas as mulheres do meu país”.

Ao longo dos 15 anos, a lei foi alterada pelo Congresso algumas vezes. As modificações no texto-base aceleraram nos últimos anos. Levantamento da reportagem identificou 41 delas entre 2015 e 2021.

Mudanças que vêm tanto para o bem como para o mal, na opinião de especialistas.

Há seis anos, uma lei complementar incluiu empregadas domésticas agredidas por patrões no escopo da Maria da Penha. Em 2017, decidiu-se que as vítimas devem ser atendidas preferencialmente por mulheres. No ano seguinte, que é crime descumprir medidas restritivas (como não se aproximar de uma mulher).

Outro acréscimo, de 2019, facilitou a apreensão de armas de fogo de agressores que têm posse ou porte. Argumentou-se, à época, que a presença de armamento no lar aumenta as chances de feminicídio.

São, por assim dizer, puxadinhos benéficos na lei. Nem sempre é assim, diz a socióloga Samira Bueno, diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Ela insere entre as “mudanças problemáticas” uma que obriga profissionais de saúde a comunicar à polícia, em 24 horas, suspeitas de violência doméstica.

A medida tira a autonomia da mulher em relação a procurar ou não a polícia, afirma. Digamos que uma esposa não esteja pronta para denunciar o marido que bateu nela. Vai querer ir numa unidade de saúde ou vai ficar com medo que seu agressor desconfie que ela o delatou? “Muitas vezes é um desestímulo para que procure ajuda”, diz Bueno.

Mariana, que contou sua história à reportagem, foi levada por uma amiga para registrar um boletim de ocorrência contra Marcelo. Eram um casal havia dois anos quando foram a uma festa na agência de publicidade onde ele trabalhava. Ele pulou na piscina, e ela pegou o celular dele para evitar que o aparelho “fosse afogado”, conta.

“Aí fui no banheiro, e ele começou a bater na porta, dizendo ‘me dá o celular’. Quando a gente chegou em casa, eu falei ‘meu, que que tá acontecendo?'”, narra. “A gente nem tinha um relacionamento monogâmico pra ele agir estranho daquele jeito com o celular.”

Mariana levou dois tapas no rosto. Depois, Marcelo a empurrou na cama. Ela conseguiu destravar a câmera do iPhone dele e começou a filmar. “Ele ficou me xingando, falando que eu me dizia feminista para usar essa pauta pra fazer o que quisesse. E aí, comigo já filmando, ele repetiu as agressões, me deu mais tapas.”

Advogada, ela fazia mestrado na área. Mesmo assim, conta que não teve de imediato a ideia de procurar uma delegacia. Sua primeira reação foi ligar para uma amiga, que sugeriu que elas fossem registrar um BO.

Numa delegacia comum, foi perguntada pelo escrivão se a agressão registrada em vídeo era “uma brincadeira sexual”. “E vamos olhar as camadas de privilégio: sou branca, tenho uma carteirinha da OAB [Ordem dos Advogados do Brasil], o que demonstra que eu conheço os meus direitos, e tinha a agressão gravada.” Acabou indo a uma Delegacia da Mulher, onde foi bem atendida.

Esse viés de cor e classe é muito importante quando pensamos na importância da lei, diz a presidente da Comissão de Mulheres Advogadas da OAB-SP, Claudia Luna. “Por causa desse atendimento não humanizado nas delegacias, você ainda encontra muitas mulheres, principalmente periféricas, que dizem que não vão buscar a lei porque ela não funciona”, afirma.

Para Samira Bueno, a Maria da Penha “não é apenas uma lei preocupada exclusivamente com a punição do autor da violência, ela é muito mais do que isso”. Primeiro porque busca garantir acesso da mulher à Justiça, além de ter “um capítulo inteiro que fala sobre prevenção”.

A lei ajudou a abrir caminho para outras legislações. Em 2015 foi aprovada a lei do feminicídio, que estabelece como um crime específico o assassinato de mulheres por serem mulheres. “A Maria da Penha rompeu com uma lógica de que essa violência é simplesmente o que acontece no âmbito privado das famílias”, diz a deputada Talíria Petrone (PSOL-RJ).

Mas a legislação nem sempre foi eficaz para punir agressões que não deixam roxos no corpo. A violência psicológica contra a mulher, por exemplo, já era citada na Maria da Penha, mas só na semana passada virou crime reconhecido pelo Código Penal.

A tipificação de novos crimes e as alterações propostas pelo Congresso são polêmicas. O líder do governo no Senado, Fernando Bezerra (MDB-PE), por exemplo, apresentou neste ano um projeto que amplia de três meses para dois anos a pena mínima para agressores.

Na bancada feminina, deputadas de diferentes espectros políticos afirmam que mudanças na lei e ampliação da punição não devem ser o foco do Legislativo.

Enquanto Talíria afirma que “não adianta a gente endurecer pena se a gente não tiver outras políticas”, a colega Clarissa Garotinho (PROS-RJ) diz ser natural que, em 15 anos, o Congresso queira modificar a lei. “É um tema polêmico. Não acho que vá mudar a mentalidade do agressor, mas é inaceitável que ele deboche das vítimas não cumprindo nem as medidas protetivas.”

Para Bueno, novos desafios escoltam os tempos atuais. A pandemia da Covid-19, dínamo de violência doméstica, é um deles. Os meses de quarentena dificultaram registros presenciais de boletim de ocorrência, a crise financeira estressou relações, e não se pode descartar uma mudança de prioridades.

“Quando a grande preocupação da sua vida é se seus filhos vão ter o que almoçar, você se coloca em segundo plano. A mulher deixa de denunciar porque não tem mecanismos para sair daquela situação, como autonomia financeira.”

Pelo menos isso a advogada Mariana tinha. Ela era dona do apartamento onde morava com o namorado que a estapeou. Quando o denunciou, fez exame de corpo de delito e foi questionada se queria uma medida protetiva contra o ex.

Meses depois, recebeu uma carta do Tribunal de Justiça de São Paulo perguntando se ela gostaria de atendimento psicológico. “Achei isso muito bacana porque o espírito da Maria da Penha é de olhar integralmente para a mulher que sofreu esse tipo de situação.”

Marcelo foi condenado a três meses em regime aberto e obrigado a frequentar rodas de conversa que buscam reabilitar homens violentos.

Para Mariana, dupla vitória: por um lado, é uma forma de proteger futuras namoradas dele, diz. “A gente tem que prevenir os casos futuros, e isso só acontece com educação. Melhor do que dar justiça para quem sofreu é impedir que mais mulheres passem por isso.” Por outro, faz com que ela sinta que não foi a única “punida”. “Saber que ele teve que ir lá toda semana falar sobre os sentimentos me fez bem.”

Novos projetos

ANNA VIRGINIA BALLOUSSIER E ANGELA BOLDRINI

SÃO PAULO, SP, E BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – E agora, Fledson?

Fledson de Sousa Lima, 42, enfermeiro, psicólogo e hoje coach, já havia participado do E Agora, José?, projeto socioeducativo em Santo André (SP) para homens condenados por agredir alguma mulher. Mas do outro lado do balcão, como profissional de saúde interessado na reabilitação de réus enquadrados na Maria da Penha, lei para combater a violência doméstica que neste sábado (7) completa 15 anos.

“Mesmo tendo sido exposto a todo o conteúdo, acabei lá como apenado”, diz. O episódio que o faria voltar para o programa como audiência aconteceu em 2014 e envolve um animal de estimação e a mulher com quem ainda é casado.

“Foi uma coisa muito fútil. Existia uma cláusula [na relação], um contrato nosso, de que não haveria animais dentro de casa”, conta. Foi um começo de casamento “com muitos, muitos conflitos”, e naquele dia o caldo engrossou.

“A gente tinha brigado muito, aí ela foi pra casa da mãe e voltou com um animal.” Sentiu que ela tinha trazido o bichinho para fazer birra. Pronto. O que era “uma conversa muito acalorada” degringolou, segundo ele, para empurrões mútuos, “do tipo ‘sai daqui'”.

Os dois ficaram exaltados, ele segurando a gaiolinha com o bicho indesejado, a esposa tentando impedi-lo de levar o pet embora. “Nesse puxa-e-vai, ela acabou caindo. [A queda] gerou algumas lesões no braço dela. Não tem jeito, o homem acaba tendo uma força maior.”

A esposa fez boletim de ocorrência, o caso tramitou na Justiça e, em 2019, Fledson foi condenado. Como a pena era menor do que dois anos, a juíza aceitou que ele participasse do projeto de reabilitação coordenado pelo psicólogo Flávio Urra no ABC paulista.

Em abril de 2020, o presidente Jair Bolsonaro sancionou uma lei que traz para o escopo da Maria da Penha a recuperação de agressores. Eles podem, hoje, ser obrigados a frequentar centros de reeducação e a receber acompanhamento psicossocial.

A canetada veio com a pandemia da Covid-19 já em curso e um consequente galope nos números de violência doméstica. Brasil afora, programas como o de Urra tiveram que paralisar atividades ou migrar para uma plataforma digital.

Em Santo André, o último grupo presencial foi em março de 2020. Há perdas óbvias, já que o olho no olho é difícil de substituir, diz Urra. Debandam também homens de classes mais baixas que não têm bom acesso à internet.

Há vantagens, contudo. Em versão online, o E Agora, José? consegue alcançar mais gente. “E o fato de ser virtual pode fazer ter menos pressão. [Os condenados] se abrem até mais”, afirma o psicólogo.

Desde que a Maria da Penha entrou em vigor, em 2006, vários projetos similares surgiram. Isso porque a lei, desde seu início, não foi concebida apenas para punir agressores mas também para tentar romper o ciclo de violência nas famílias.

Os nomes escolhidos para os programas, como Tempo de Despertar e Tardes de Reflexão, evidenciam a necessidade de levar quem ataca a perceber que suas ações fazem parte de uma cultura machista que pode ser descontinuada.

Idealizadora do Tempo de Despertar, que parou por seis meses e depois retornou via Zoom, a promotora paulista Gabriela Manssur aponta situação similar à relatada por Urra. Quando o papo acontece pela tela do computador, é mais fácil o homem se abrir.

Também vale levar em conta, segundo Manssur, o tempo gasto para ir e voltar do fórum onde os encontros aconteciam antes da pandemia.

Promotor envolvido no Tardes de Reflexão, iniciativa do Ministério Público do Distrito Federal, Gabriel Mendes diz que a pandemia atrapalhou a adesão. “Não é tão alta quanto o presencial, e você não pode tornar obrigatório por causa das dificuldades de acesso à internet.”

Online ou in loco, as questões se repetem. “Querem saber por que não existe uma ‘lei João da Penha’, e aí você tem que explicar”, conta Mendes. “Essa pergunta é absolutamente recorrente, a gente desenvolveu roteiro para poder expor os fatores históricos e culturais que explicam o fenômeno da violência doméstica.”

Para ficar em dois exemplos que ilustram a posição subalterna a que metade da população foi submetida por décadas: há 89 anos, as mulheres nem sequer podiam votar. E só no super-recente 2005 o Código Penal deixou de prever punições mais duras para crimes sexuais contra uma “mulher honesta”. Ou seja, era considerado menos mau se a vítima fosse considerada imoral.

O promotor acredita que ensinamentos assim serviram a Sebastião, um senhor que nunca teve pendências criminais até ficar viúvo e ter de criar duas filhas. “Quando elas entraram na adolescência, ele começou a sistematicamente frequentar a Justiça por conta da violência doméstica.”

As jovens queriam usar maquiagem, escolher roupa e outras coisas que não entravam na sua cabeça machista, Sebastião veio a entender depois.

“A violência verbal era a mais comum, xingamentos tipo ‘você está igual a uma rapariga’. Já chegou a agredi-las, inclusive com cinto. Uma vez machucou bastante a mais velha. Mas ele se engajou de tal maneira [no Tardes de Reflexão] que meses após o encerramento foi com as filhas à sede para agradecer, levou uma broa de fubá maravilhosa.”

O grupo de Flávio Urra organiza oficinas que, segundo ele, já atenderam cerca de 400 homens de 20 a 95 anos -apenas dois deles seriam reincidentes em seus crimes. Ele diz que muitos chegam de cara fechada. “A resistência vem por se sentirem injustiçados, acham que não cometeram nenhum crime, que houve apenas uma briga em família.”

Existe um pragmatismo nessa abordagem: não é tratar o agressor como coitadinho, mas trabalhar na raiz do problema para evitar que ele se reproduza. Os encontros podem questionar, por exemplo, o que eles veem como encargo feminino e masculino.

“Sobre as tarefas domésticas, apresentamos uma folha com duas colunas, para o homem e para a mulher. Cada um escreve na tabela o que faz em cada hora do dia e o que faz a mulher com quem convive.”

Fledson não vai mentir. “Sou um machista em recuperação. Esse ranço, ele não se dissipa de um dia para o outro simplesmente porque você teve a imersão num curso.”

Com um pai que batia na mãe e uma mãe que o poupava de cuidar da casa, mas não suas duas irmãs, o coach diz que precisa “ressignificar essas ideias que foram absolutas”. “Estou me colocando como vítima? Não. Mas cresci nesse cenário. Hoje, percebo que esse não é o caminho.”

De alguma forma, ter chegado às vias de fato com sua esposa naquele dia é uma herança maldita dessa criação, afirma.

Acha que sua fé evangélica ajuda nessas horas. “Deus fala que tem que amar o próximo como a ti mesmo, um princípio claro, reto. Não tive a nobreza para executá-lo.”

Hoje, ele diz não ter dúvidas de que faria diferente se confrontado com a mesma briga de 2014. Diria para sua versão passada, se pudesse: “Fledson, acho que você não tem condições agora de continuar a conversa, conheço você, às vezes tem comportamento explosivo. Vai dar uma volta e depois retoma a conversa”.

Hoje o casal tem duas bebês e uma máquina de lavar louça “que ajuda bastante”, brinca. E o resto dos afazeres domésticos devem ser compartilhados por homens e mulheres, ao contrário do que aprendeu na juventude, diz. “Todos os dias luto para ser a referência das minhas filhas e não envergonhá-las.